terça-feira, setembro 05, 2006

Decifrando (curiosa que sou)

Há exercício bastante em olhar para uma pessoa e pensar sua vida, seu modo de entender o mundo e de viver. Esse é um exercício que, queira eu ou não faço a todo momento. Algo como um reflexo medular, sem pensar já estou devaneando sobre aquele que está na minha frente. Um misto de captar sinais, ouvir a conversa, afiar a intuição e chegar a uma conclusão. Me perdoe o teor da veracidade do que venho a concluir, mas tudo segue tão natural e espontaneamente que não há como excluir verdade que obtenho da límpida resposta que aparece.
Assim, quando vou ao supermercado e vejo a funcionária que fatia frios em plena atividade de sua função sistemática, posso imaginar através de sinais que a mesma emite, o que ela quer me revelar. Seu olhar, suas mãos, sua roupa, seu formato de rosto...tudo são sinais que me levam as sua sua história. E como uma penetra na festa alheia, viajo na vida dela.
Da mesma forma, o professor sisudo na frente da sala de aula, está me passsando seus códigos, passando pelo crivo de meus pensamentos. Imagino quando ele chega em casa e corre para afagar seu cão. Fim de sua sisudez. E, mórbido ou não, esses pensamentos dominam minha cabeça nos momentos mais impróprios. Refém do que voa solto no andar de cima, me pego dando um sorriso inoportuno resultado da idéia que criei. Sei que corro o risco de viver para os outros uma vida melhor do que ela pode ser. Ou pior. Porém imaginar é quase viver.
Vou mais além se me deparo com pessoas já avançadas em idade. Essas me dão substrato para ter uma vida quase inteira nas mãos. Dessa forma, quando aceno para o senhor que vive na casa de repouso de frente da escola do meu filho diariamente, é porque já o conheço. Por muitos dias o vi lá, talvez ele tenha me visto antes. Acompanhava eu tocar a campainha, esperar o porteiro abrir, para enfim dar o beijo na bochecha e desejar-lhe boa aula. Até que resolvi acenar para ele. E hoje quase diariamente o gesto se repete. Em dias de chuva ele não está lá. Sei que foi um advogado criminalista e metódico em seu trabalho, e que o boné que usa é só para afastar-se do sol com a mesma força que tenta afastar o passado rígido que viveu. Com sua primeira mulher foi extremamente feliz, mas enviuvou após muito sofrimento. Tiveram quatro filhos. Austríaca que nunca conseguiu falar muito claramente o português. Os meninos foram morar na Europa. Tem lindos netos que sentem falta do avô, que existe mais como uma foto no porta retrato do que como uma pessoa do outro lado do Atlântico. Com a segunda mulher encontrou boa companhia. Poucos anos tinham de relacionamento quando um mal súbito tirou sua vida ao ler a orelha de um livro no saguão central de uma certa livraria. Já estava aposentado e receber essa notícia entrou para o rol da piores coisas que já ouviu na vida. Hoje mora lá, de frente à escola de meu pequeno para que possa me acenar, quase que diariamente.
E brincar de decifrar aquela pessoa que surge no espelho. Esse é o desafio que não deixo nunca, nunca se completa. Essa diversão existe desde os primórdios quando qualquer choro forçado era motivo de correr para o espelho e descobrir como ficava ao chorar. E até hoje essa é a pessoa que mais me mostra a necessidade do exercício. E que me faz perpetuá-lo.

7 comentários:

Anônimo disse...

Titinha, por um momento, um instante talvez, achei que estava lendo sobre minha pessoa, acredita?! Sério!
Eu não me sinto mais só nesse mundo de imaginar!
Olho para as pessoas e as imagino, como um conto de fadas. Imagino uma vida boa, cheia de alegria... imagino a pessoa chegando em casa e recebendo um abraço acolhedor. Fora que quando choro corro pro espelho! hahahaha
Ai Jesus... como gosto de vir aqui ler seus textos e me sentir tão íntima de uma pessoa que admiro!
Bjs pra tú!

Anônimo disse...

Ah, esqueci... gostei muito da história ex advogado, senhor no asilo em frente a escola do seu pequeno.
História veridica ou mais uma da imaginação da minha amiga?!

Eu não sei, você sabe? disse...

Ah, Lu se é verdade ou não eu precisaria perguntar a ele, mas na minha cabeça já é verdade, o que já é mais de meio caminho andado, certo? beijos!
Tita

Anônimo disse...

Engraçada coincidência desse seu texto hoje e o meu estado de espirito.Creio,que ambas somos bruxas..rs.Ao me encaminhar prá cá de manhã vinha pensando mais ou menos isso,não com a mesma linha de raciocínio,mas com a mesma intensidade.Tentava olhar dentro dos olhos das pessoas que cruzava e tentava decifrar o grau de felicidade,de preocupação,de desejos ocultos,enfim o que vai pela cabeça de cada ser humano.Mas ao chegar no meu trabalho,e começar a me descascar de meus agasalhos (odeio frio),sim me sinto uma enorme cebola embrulhada.Bem deixa voltar ao assunto em questão.Parei olhe vc Tita minha doce,parei em frente o espelho e entrei dentro de meus próprios olhos e mergulhei no imenso verde escuro em que ele se encontra hoje e descobri que infelizmente no momento nem eu sei à quantas andam as minha emoções,tão pouco os meus desejos (os mais ocultos).Sim,é muito louco se viajar por esse universo..rss.Um abraço bem quentinho......Hibis

Anônimo disse...

Lindo o texto...
Eu confesso que adoro os olhos, adoro tentar decifrar um olhar, e minha imaginação flui, não na mesma direção da sua, de imaginar passado, presente, histórias, mas de saber o que os olhos estão falando, sentindo...se estão tristes, se sorriem, se a alma está tranquila...Adoro cumprimentar as pessoas, mesmo as que não conheço e me divirto com a cara de espanto de algumas, quando estão com os olhos longe, pensativas e ao seu lado escutam minha voz num sonoro "BOM DIA!!!", rssss
Cada um com seu cada um né?
Adoro este espaço, adoro vc!!!
Bjs

Anônimo disse...

que texto, tita...lindo! e agora lendoo, lembrei q ja pratiquei esse exercicio algumas vezes. vejo tb q fui menos longe... adorei!

Mariana Mesquita disse...

Achei o texto lindo, lindo. Também sou fascinada por gente e mais ainda, por velhinhos. Fiquei com vontade de adotar esse avô, já que ando tão sem os meus. Beijo...