Ilustração de Ralfe Braga, coisas que só descobrimos porque existe internet.
V* acordou cedo e não foi nada fácil. Chovia pra cacete na cidade, mas ele já estava cansado do barulho da chuva para poder se apegar a ele. Não ter o que fazer era a rotina e se descobrir incapaz aos 58 anos levava-o ao fundo de poço. Vestiu sua calça surrada e suja. Arrumou o cabelo ondulado e grisalho com o pente fino que cuidadosamente recolocou no bolso de trás da sua calça. Junto com a carteira carregada com apostas da mega sena, quina, jogo do bicho e uma rifa de DVD que será sorteada no dia 20 de dezembro. Na sua carteira, ainda, seu Registro Geral e nenhuma cédula ou moeda, nenhuma. Na absoluta falta de dinheiro existiam alguns boletos para pagar e um cartão Rener. Um homem cheio de sonhos quase impossíveis. Em seu RG, a três por quatro é digna de mafioso, talvez o sobrenome que sugeriu participação em organizações escusas. Mas quem vê aparência não vê essência, e definitivamente não era o caso. Ainda estava escuro quando saltou do ônibus e caminhou até a porta da oficina mecânica do irmão e por não encontrá-lo tão cedo lá, puxou seu Derby de embalagem azul acomodada no bolso da camisa e o levou até boca. Diante das portas cerradas do estabelecimento esperou alguns minutos antes de acendê-lo. Não porque titubeasse na vontade de fumá-lo, e sim porque, naquela hora da manhã seus gestos eram naturalmente mais lentos. A tragada não caíra bem e antes da segunda ele jogou o danado na sarjeta, maldizendo-o. Talvez tarde demais. Foi tomado por uma mal estar. Suava frio na testa e o ar se recusava entrar em seus pulmões. Tentou pensar rápido com o oxigênio que restava em seu cérebro e andou a passos lentos até a padaria já aberta. Pediu um copo d'água, que foi prontamente recolhido da torneira e estendido até sua mão pálida de unhas sujas. Tomou meio gole e o mal estar aumentou. O sujeito ao seu lado viu que algo não ia bem. V* se escorou no balcão e escorregou caprichosamente até estender-se no solo. Ele já não via mais nada com seus esbugalhados olhos azuis. Um elemento pulou sobre seu tórax e começou a fazer movimentos que o mesmo chamou de ressucitação. A emergência modificou a manhã da padaria do centro e o assessor parlamentar do vereador músico de São Paulo que passa diarimente em frente ao local observou o movimento estranho antes de chegar ao seu gabinete de trabalho. Acenou com vigor para a primeira ambulância que passava. Mesmo estando com outra paciente o carro parou e atendeu o homem, que já chegou ao hospital sem respiração, sem pulso, sem batimento cardíaco. Mas com a carteira no bolso da calça. O assessor parlamentar não sabia informar quanto tempo tinha se passado, mas pela aparência de V* já havia alguns bons minutos. Só restou tentar identificar a pessoa e avisar a família. É para isso que vivemos. Para ter o nosso dia que será muito diferente, mas não teremos a quem contar.
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A quinta-feira seguiu com chuva forte.
6 comentários:
Tita,
Até que parte é conto e até que parte é real? Acabei de assistir o Little Miss Sunshine e fiquei tentando ver um pouquinho de você lá.
Terminou o filme, virei para a patroa e disse: Não quero ter que enterrar mais ninguém nesta vida. Chego aqui e dou de cara com este post.
A vida é bonita e a vida é uma merda. O mesmo vale para a morte.
Beijo,
A descrição dele me fez lembrar meu avô, N*... só não vale os cigarros, porque ele não fumava.
Mas gostei desse post... gostei mesmo...
Beijosss
OI Leo!
É pura vida real, levemente misturada com minha imaginação porque ninguém viva só de vida real:)
Quanto ao filme, pensando bem ele não é nada a minha cara exceto pelo motivo que minha amiga saberia que eu iria gostar. Eu não sou tão louca nem tão determinada como aquele povo!
Lalaiá!eu que gosto de vc mulé!
beijo
bem melancolico, V* já aceitava esse fim e tudo combinou com o dia de chuva. muito bom, tróia! ainda quero um livro dos teus contos. beijo beijo
Acordamos,batalhamos por mais um dia.Fumamos um cigarro ou não...batalhamos por mais aquele dia...Descansamos...ou nem.Acoradamos e batalhamos novamente por mais aquele novo dia...e assim sucessivamente...até morrer.Triste?...melancólico?...real?..sei lá tudo isso penso eu.Mas entre uma coisa e outra...tentamos ser FELIZ!..Lux!....Titux!..Hibas por aqui....
Lindo, Tita,
gosto muito desses flagrantes de vidas reais, pessoas reais, aquelas mesmas que acham que suas vidas não dariam nem uma lauda, quanto mais um livro, mas que guardam intantes carregadinhos de significado...
Beijo grande, obrigada pela indicação do Ralfe Braga, o traço dele servirá de indicação para um amigo que necessita de ilustrador. Vou checar se é a praia dele também.
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